Saiba mais sobre o novo filme de Pedro Almodóvar, Julieta

Sabrina Nobre | Hoje no Cinema

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Publicado em 21/03/2016 às 21:57

Uma mãe escreve uma carta sem destino à sua única filha. Uma carta nua e direta, um vômito seco de lembranças e sensações, de culpas, de fracassos e abandonos, e talvez também de mentiras compassivas. Essa carta, essa página em branco, é Julieta, o novo filme de Pedro Almodóvar. O cineasta está há meses – na verdade anos – às voltas com uma personagem que agora se desdobra em duas atrizes – Adriana Ugarte e Emma Suárez – para representar a juventude (a lembrança) e a maturidade (o presente) de uma mesma voz. Almodóvar ainda não revelou muito nem dela nem da história que leva seu nome e talvez por isso se mostre temeroso de não encontrar as palavras exatas para falar de um filme de mulheres que se parece muito pouco com seus outros filmes de mulheres. Um drama sem pausa, para as personagens e para o espectador, que cavalga pelo tempo, a geografia e os acontecimentos com uma única esperança: encontrar um destino para essa carta angustiada.

“Este é um filme de mulheres imperfeitas mas defensáveis, como são vocês, como somos todos”, afirma Almodóvar sobre as personagens de seu vigésimo filme, que estreia na Espanha em 8 de abril. A maior parte do elenco nunca tinha trabalhado com o diretor e o enredo é inspirado em três contos da Nobel de Literatura Alice Munro. “Tentei ser o menos retórico possível, a contenção me acompanhava porque decidi que esse era o modo de contar esta história, que não é um melodrama, mas um drama seco”, acrescenta. “Lutei muito com as lágrimas das atrizes, contra a necessidade física de chorar. Essa luta é muito expressiva. Não é por pudor, é porque eu não queria lágrimas, o que queria era abatimento. Aquilo que fica dentro depois de anos e anos de dor. Adoro o melodrama, é um gênero nobre, um gênero grandioso, mas eu sabia muito bem que não queria sua épica, queria outra. Simplesmente, este tinha de ser um filme muito seco”.

Sentado em uma poltrona de couro em seu escritório no bairro de Ventas em Madri, Almodóvar (Calzada de Calatrava, 1949) fala ao lado do eterno original de Ceesepe do cartaz de A Lei do Desejo, uma colagem de Dis Berlin e vários desenhos de Carlos Berlanga. Restos de outros tempos que agora, nas paredes redecoradas, convivem com fotografias de pessoas que o cineasta espanhol ama ou admira. Um convite que se estende para Penélope Cruz, Billy Wilder, John Waters, Quentin Tarantino, Spike Lee, Wes Anderson, Pina Bausch, Lauren Bacall, Michelangelo Antonioni, Francis Ford-Coppola e Jeanne Moreau, entre outros. Frente a essa constelação se amontoam os incontáveis prêmios que o cineasta recebeu em sua carreira. Só se sente falta do brilho dourado dos Oscars que ganhou em 1999 por Tudo sobre Minha Mãe e em 2002 por Fale com Ela. As duas reluzentes estatuetas o esperam, como seu gato Lucio, em casa. “Ganhei de presente durante a filmagem de A Pele que Habito. Um gato de rua que agora é o rei da casa e que não quer mais nada coma a rua. É curioso, mas o amor que tenho por ele deu forma a minha ternura, toda uma reeducação que me ajuda muito”, afirma com uma gargalhada durante a conversação.

Se começarmos pelo princípio, o embrião de Julieta estaria nos contos Destino, Logo e Silêncio, de Munro, cujos direitos o cineasta comprou em 2009, logo após lê-los. Em seu elogio à escritora canadense, a Academia Sueca disse ao lhe conceder o Nobel que em suas histórias a maior dor não se expressa, “interessa-lhe o silencioso e o silenciado, as pessoas que escolhem não escolher, os que vivem à margem, os que abandonam e os que perdem”. Julieta ia se chamar Silêncio, como um dos contos, mas o título coincidia com o do próximo filme de Martin Scorsese, Silence, e Almodóvar preferiu mudá-lo em novembro de 2015 para evitar futuros equívocos. “Eu, antes de tudo, agradeço a Alice Munro pelo enorme prazer como leitor”, afirma antes de entrar nos pormenores do nascimento do roteiro. “Apesar de ter uma protagonista comum, os contos não eram consecutivos. Não era simples dar a eles unidade, mas me fascinaram tanto que comecei a escrever. Minha primeira ideia era fazer um filme em inglês e com atrizes de fala inglesa; queria rodar no Canadá, nos lugares de que falava Munro. Estava decidido. Durante a promoção de A Pele que Habito fomos procurar locações em Vancouver e ali começaram os problemas. Fiquei arrasado. As paisagens reais eram tão desoladoras e tristes que vi claramente que não podia rodar ali, nem mesmo por alguns meses. Era muito deprimente. Então fomos ao estado de Nova York em busca de uma mudança geográfica. Acabei o roteiro e me traduziram isso para o inglês com uma idiossincrasia americana. Também não me convencia. Por isso deixei em uma gaveta e esqueci. Até que, há dois anos, Lola [García, sua ajudante pessoal] e Bárbara [Peiró, encarregada do departamento internacional de sua produtora, El Deseo] sugeriram-me que retomasse o projeto mas com uma nuance: que a história não fosse mais nos Estados Unidos, mas na Espanha. Acho que foi nesse momento que decidi me esquecer de Alice Munro”.

Dos contos originais quase não sobra nada. “Exceto algo que para mim é fundamental e que pertence a ela: a sequência do trem”, continua o cineasta. “Sempre há algo que nos impele a fazer um filme, que nos atrai especialmente, e se algo me impeliu a querer fazer este filme são as cenas que ocorrem dentro do trem. Qualquer cinéfilo adora trens e eu estava empolgado com a ideia de filmar em um. Mas a realidade foi bem diferente, e trabalhar dentro de um trem de verdade, pequeno e com os assentos cheios de ácaros, se tornou um verdadeiro suplício. Quase não podíamos nos mover, tossíamos sem parar, a garganta coçava, enfim… Era a primeira semana, a equipe ainda não se conhecia, tínhamos um operador novo [o francês Jean-Claude Larrieu], todos estávamos fazendo o filme e infelizmente não foi algo tão prazeroso”.

As viagens são uma parte substancial do filme, que cavalga em enormes elipses de época em época. Lacunas geográficas e emocionais. De norte a sul. Do passado ao presente. Em cada deslocamento, em cada lugar, em cada situação, em cada época, os personagens se encontram em casas, em cozinhas onde os objetos nos dizem tanto como as pessoas. Falam até as paredes, até os bolos de aniversário, que nunca foram tão amargos. “As cozinhas são o lugar mais sagrado das casas. Antes eu gostava de dizer que em uma cozinha nunca se mente. A verdade é que nelas sempre acontecem muitas coisas. São lugares balsâmicos, exceto nos filmes do Tarantino, onde as mulheres se matam com todos os utensílios que encontram nelas. Em Volver, as três mulheres da família rodeiam um fogareiro a gás que têm dentro da cozinha mais moderna. Esses fogareiros de gás eram uma coisa de que minha mãe gostava muito. Em muitos de meus filmes aproveitei para dar alguma receita. É um costume pedagógico de que eu gosto o bastante. É como naquele filme de Truffaut em que a protagonista passa manteiga numa torrada e diz que o truque para não quebrar é sempre pôr outra embaixo. Sinceramente, parece-me um grande conselho”.

Almodóvar enfrentou a filmagem de Julieta depois de uma longa pausa motivada por uma complicada cirurgia nas costas. O pós-operatório se prolongou durante meses, e o cineasta foi obrigado a ficar mais de um ano parado. Decidir fazer este filme, com muitas locações externas, deslocamentos complicados e mudanças constantes de cenários, não era a melhor ideia. “O lógico teria sido filmar em estúdio, mas não sou dono do que escrevo. Até os trechos de Madri foram filmados em casas reais. Passamos dias na Galiza, nos Pirineus, na Andaluzia… O certo é que comecei a rodar Julieta sem saber ao certo se poderia terminar. Nada me garantia isso. Fazia muito tempo que não passava 10 horas em pé. Como tantas vezes na vida, só tinha duas opções. E não hesitei. Para mim era escolher entre viver ou não viver. Extremo e exagerado a esse ponto. Porque para mim viver é filmar. O ato de filmar é tão importante que pensei em sua capacidade curadora. E não me enganei”.

É essa dependência o que o faz viver cada projeto ao limite. “Os filmes são minha vida”, afirma. O cinema para ele é uma aventura em equipe e individual. “Não poderia estar melhor rodeado, ajudam-me a todo momento, mas sempre há uma parte da aventura, misteriosa e secreta, que é individual. E não acredito que seja o único diretor a quem isso acontece”. Confessa que enfrenta frequentes inseguranças. “Incerteza é a palavra que melhor define uma aventura cinematográfica. Outro dia falava com um autor que tem uma obra de que eu gosto de muito e com quem eu adoraria escrever algo, e vi sua cara de surpresa quando tentei explicar a ele que, no cinema, sempre sabemos o dia em que começamos, mas nunca o dia em que acabamos. Na realidade nem mesmo sabemos se vamos acabar um dia. Goste ou não, essa é a natureza frágil deste trabalho”. Um ofício ao qual você entrega seus dias. “O cinema é minha vida de uma forma total. E isso de forma alguma me condena. Se não estiver envolvido em um filme, minha vida se torna triste. E isso me mantém em permanente vigília. Me faz estar atento a tudo o que leio, vejo e escuto porque daí, dessa realidade, sairá a primeira linha de minha próxima ficção, que é minha verdadeira realidade. Talvez fale muito mal de mim, mas sou uma pessoa solitária e muito limitada quanto a aspirações, ânsias e desejos. O certo é que o cinema preenche tudo em minha vida”. Essas palavras resumem o que é hoje Pedro Almodóvar. Em suas mãos, o cinema muda as regras da vida, e o espectador deve deixar o compromisso com o real para entrar em uma verdade mais profunda.

Talvez o mais comovedor de Julieta seja como são descritas, com poucos traços, as relações entre mãe e filha quando o pior, seja a doença ou a loucura, está presente. Bastam apenas alguns segundos focados em um rosto, o da atriz Susi Sánchez, ou um gesto, o de uma menina dando banho em sua mãe deprimida, numa cruel inversão de papéis. Almodóvar recorda que vem de um lugar onde isso é comum: as filhas cuidam das mães, as mulheres cuidam das outras mulheres. Essa raiz manchega está presente no filme, mas também outras condutas que lhe foi mais difícil assumir. “Eu não sou mãe, mas neste filme tentei me sentir mãe para compreender certas atitudes, por exemplo que, para uma mulher jovem, a filha é mais importante que sua própria mãe. E isso, que talvez não compartilhe e que não deixa de ser algo muito cruel para mim, é assim mesmo”. Com este filme, sua compreensão do mundo feminino parece mais funda que nunca. “Ainda vão me perguntar mil vezes sobre o universo feminino e direi que, na verdade, não é nada tão excepcional. Não são tão difíceis como pensam, embora sejam misteriosas o bastante para que eu as transforme num excelente sujeito dramático. Vivemos rodeados de mulheres, de mães, irmãs, de esposas. Trata-se de escutar um pouco o que acontece ao nosso redor e qualquer pode ter um universo feminino como o meu. Não sou tão especial. O problema, e falo sobretudo de Hollywood, é que a indústria do cinema não permite que se façam filmes de mulheres. Eu sou dono de meus filmes e por isso decido que meu protagonista será uma mulher como mais de 50 anos. O mais terrível é que a maioria dos roteiristas não se dão conta de que existem muitas mulheres entre 50 e 60 anos com as histórias mais maravilhosas que se podem contar”.

Uma dessas mulheres estende agora sua mão para escrever uma carta a um fantasma: “Eu te eduquei na mesma liberdade que meus pais me educaram (…). Nunca quis te falar disso, você era muito pequena para que te perturbasse com a amargura de minha culpa. Mesmo assim, você a percebeu (…) e apesar de meu silêncio acabei te transmitindo isso como um vírus”. Remetente: Julieta.