Em "Meia-Noite em Paris", Owen Wilson é Gil Pender, um roteirista de cinema que divide sua atenção entre o romance que tenta escrever e a noiva que nem tenta entender (se é que ela é passível de entendimento). E, assim como o personagem principal do filme sempre é uma extensão do próprio Woody Allen, o personagem principal do livro de Gil também é um retrato do seu autor. Um cara nostálgico, saudosista, que considera ser o passado melhor que o presente.
Durante uma viagem a Paris com a noiva e os sogros, Gil imagina como seria mais fácil escrever um romance cercado pela atmosfera criativa que inumdava a cidade nos anos 20. E, neste devaneio, ele consegue se transportar a este passado mágico. Gil tem, então, encontros com muitos de seus ídolos que habitavam a Cidade Luz naquela época: Picasso, Scott Fitzgerald, Hemingway, Cole Porter, Degas, Gauguin, Man Ray, Buñuel e o responsável por uma das passagens mais engraçadas: Salvador Dalí. No meio dessa coleção de citações, Gil tenta desabafar com Dalí, mas o surrealista se importa apenas com… rinocerontes!
Eugène Ionesco nasceu na Romênia, mas tornou-se escritor em Paris. Ícone do chamado "teatro do absurdo", ficou célebre pela peça "O Rinoceronte". Numa cidade comum, num dia qualquer, os habitantes são surpreendidos por um rinoceronte que corre pela rua. Ninguém sabe de onde veio. Apesar do absurdo da cena, logo voltam à banalidade corriqueira. Mas logo são surpreendidos por outro rinoceronte. E, pouco a pouco, os próprios habitantes se transformam em rinocerontes. Muitos, numa manhã, ao despertar de sonhos inquietantes, dão por si na cama transformados num gigantesco bicho (não resisti em escrever dessa maneira Gregor Samsa!). E todos seguem essa metamorfose sem angústias, à exceção de Bérenger, que decide ser humano até o fim, custe o que custar. ionesco não deixou claro se os rinocerontes eram metáforas da estranheza frente ao mundo de uma maneira geral, numa coisa assim meio Camus; ou se representava algo específico. Diz a lenda que era uma referência ao nazismo, que mesmo sendo tão incomum e assustador, convenceu grande parte do povo alemão. Mas isso é outro papo.
Enquanto Bérenger quis enfrentar os absurdos e estranhamentos do presente, Gil preferiu fugir para um passado imaginário. Bérenger resolveu encarar o humano mundo cotidiano, mesmo que cercado por uma realidade tão estranha quanto um rinoceronte na sala de estar. Gil decidiu fugir dos rinocerontes nossos de cada dia, mas percebeu que de nada adiantava ser um escritor fora de sua época, pois os grandes artistas são fruto do Zeitgeist, do espírito do tempo em que vivem. Então, em vez de se refugiar no passado, seguiu Dalí e viu que só os rinocerontes importam.