Um jovem cria uma realidade distorcida em sua cabeça, dividindo o mundo entre as pessoas ordinárias e as extraordinárias, que "buscam de várias maneiras a destruição do presente em nome de algo melhor". E, "se uma pessoa como essa é obrigada, no interesse de sua idéia, passar por cima de um cadáver ou chapinhar no sangue, ela pode encontrar dentro de si mesma, em sua consciência, uma sanção" para isso. Esse jovem passa, então, a acreditar que faz parte desse grupo excepcional. Isolado do mundo, vivenciando essa realidade paralela, fica obcecado pelas próprias idéias, e alimenta um desejo de provar a si mesmo que pode fazer algo grande. Depois de muito pensar, atormentado e delirante, preso nas suas angústias e frustrações, decide matar. De maneira cruel, bárbara, mata pessoas que nem mesmo têm a oportunidade de se defender ou de entender o que se passa. E o que para todos é a revelação do lado mais perverso e sombrio do ser-humano, para ele torna-se um ato de auto-sacrifício religioso.
Essa história não se passa no Rio de Janeiro. Acontece numa São Petersburgo sombria, no fim do século XIX. Essa é a história de Ródion Románovich Raskólnikov, protagonista do famoso romance Crime e Castigo, de Dostoiévski, adaptado para a TV numa minissérie da BBC (foto acima).
Dostoiévski via Deus como uma justificativa para o Bem. Construiu suas grandes obras retratando a angústia humana, a busca incansável pelo sentido da vida. Cristão fervoroso, acabava amarrando esse sentido da vida à existência divina. Como disse em Os Irmãos Karamázov, "a questão principal que será perseguida em todas as partes desse livro é a mesma de que padeço, consciente ou inconscientemente, a minha vida inteira: a existência de Deus". E esse Deus construído pelo escritor russo é o norte moral da humanidade, o guia para um mundo melhor, mais humano. Numa das passagens mais famosas d|Os irmãos Karamázov, o religioso Aliócha pondera que se "não existe imortalidade da alma, então não existe a virtude, logo, tudo é permitido". Raskolnikóv, de Crime e Castigo, só foi capaz de tamanha barbaridade porque não enxergou além da condição humana terrestre.
No Rio, um desequilibrado viu em Deus a justificativa para o Mal. E, nessas horas, sempre fico um pouco incomodado. Afinal, sendo Deus onipotente, onipresente e onisciente, por que deixou que alguém usasse Seu nome para cometer tamanha barbaridade? Que não se importe que cometam crimes em nome do diabo, vá lá, mas saber que Seu nome será atrelado à morte de uma dúzia de crianças e, simplesmente, não fazer nada? O assassino só foi capaz de cometer tamanha brutalidade porque desconsiderou a condição humana terrestre.
Ferreira Gullar costuma dizer que "o homem inventou Deus para que Deus o criasse". E, assim, cada deus inventado por cada homem guia a humanidade como um personal trainer preocupado apenas com seu pupilo. O deus de Dostoiévski o confortou quando seu pequeno filho de três anos faleceu, e o fez transformar suas dores em arte. O deus do assasino do Rio o atormentou, e o compeliu a transformar suas dores em morte.
Uma barbaridade desse tipo aconteceu na cidade que dizem ser abençoada por Ele, onde a imagem do seu filho abre os braços para cuidar de todos. Pelo visto, o verdadeiro Deus não está nem aí para os homens, e nem mesmo se importa que usem seu nome em vão. E, se Ele não se importa com a transgressão do primeiro mandamento, não deve perder tempo fiscalizando os restantes…